terça-feira, 18 de setembro de 2012

Carta de Um Soldado (em Homenagem ao Corpo Expedicionário Português)

Está tanto frio. Meu Deus, como está frio. Só vejo lama e pessoas feridas à minha volta. O cheiro a carne putrefacta entranha-se na minha pele, como marca indelével do horror que me espera. Ouço metralhadoras ao longe, obuses a cair aqui perto. Os corpos avolumam-se, a morte toma tudo de assalto, para onde quer que me vire vejo um cadáver, um corpo vazio de toda a sua alma. Para o padre da minha aldeia que me dizia que iria para o Inferno quando morresse, que fique contente: ainda estou vivo, e já cheguei ao inferno.
Gritam-nos ordens em Inglês, em Francês e em Português, mas ninguém as cumpre. Temos todos demasiado medo, estamos todos paralisados de terror, para fazer o que quer que seja. Porque estamos nós aqui? Qual a razão para estarmos a cair como tordos neste pardieiro imundo? Disseram-me que os nossos aliados precisavam de nós e que não os podíamos deixar sozinhos. Quais aliados? Não vejo ninguém aqui a ajudar-me. Morremos sozinhos, sem uma palavra amiga daqueles que nos mandaram para aqui. Não vejo nenhum político. Não vejo nenhum general. Estão todos bem lá atrás da linha da frente, bem seguros nas suas fortalezas. Talvez se rendam quando a guerra acabar. Serão bem tratados e nem por um segundo se lembrarão dos milhares que morreram aqui. Escrevo para que a minha voz seja ouvida quando cair por fim, quando me juntar aos outros numa heróica queda pelo meu país, numa guerra que não fui eu que comecei. Quando cair a defender um palmo de terra num país que não é o meu, por causas que nem eu nem nenhum de nós entende. Mandaram-nos para aqui e deixaram-nos à nossa sorte.
Lembro-me da minha terra. Sei que nunca mais a verei, que nunca mais entrarei na casa dos meus pais. Imagino a minha mãe ao olhar para o prato vazio na mesa, a ver a cama que nunca mais será desfeita.
Morrerei aqui. Eu e milhares ou milhões como eu. Pessoas com famílias, com mulheres, pais e filhos. Será que os governantes pensam nesta geração perdida? Porque se pensarem não existirão mais guerras. A dor será insuportável e ninguém vai querer repetir. Se assim for, a minha morte terá valido a pena.


 Nota: Este é um texto de ficção. Não é, naturalmente, a verdadeira carta de um soldado. É uma homenagem, apenas. Qualquer inexactidão histórica é da minha responsabilidade e peço desde já desculpa por isso. Mas espero que o leiam exactamente por aquilo que é: homenagem.

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