Nunca parou. Não pedia indicações, não falava a ninguém. Rosto fechado, num quase rigor mortis ainda em vida. A música que ouvia era depressiva, inconsequente, gritos de raiva e de dor de pessoas com menos raiva e dor que ele próprio. Ele era uma sombra sem nome, uma folha qualquer numa imensa árvore de folhas iguais, de impressões mudas e negritude sem fim.
Quem seria ele, pergunto eu, que o observo à distância, como se estivesse na sua mente, como se fosse ele. É uma experiência deveras assustadora, no entanto gratificante. Sei o que ele vai fazer, sei que passos vai dar, não sei porquê, mas não o posso impedir. Uma viagem pelos infernos pessoais de um qualquer homem que não sei quem é, mas que sinto ser mais importante que muitos.
A estrada continua a passar-lhe debaixo dos pés. Flutua, como se não fosse nada. As paisagens sucedem-se, no entanto ele não as olha. Saca de outro cigarro, displicente, como se nada fosse. A chama irrequieta do isqueiro permite-lhe inspirar mais umas baforadas de morte. O cheiro acre do tabaco impregna-se na roupa, mistura-se com o odor a vergonha no seu corpo. Não se importa. Afinal não tem ninguém à espera, nenhum abraço que lhe pergunte como correu o dia, nenhuma palavra, nenhum beijo. Apenas o vazio omnipresente, aquele vazio que ocupa tudo, mesmo os espaços mais recônditos da sua alma. Interroga-se, que Deus olha por ele? Será que existe um anjo da guarda que o proteja? Ou será que tem algum demónio que o ajude? Nada, nada, nada. Um buraco sem fundo, uma porta sem nada por trás, um beco sem saída.
Continuo a acompanhá-lo, sem perceber para onde se dirige, sabendo para onde vai, mas sem saber para onde vai, qualquer coisa assim, estranha e confusa como ele próprio. Emaranhado de emoções discordantes, quarteto de cordas desafinado, uma amálgama de imperfeições e de pequenas derrotas, que todas juntas formam a derrota final. Sinto algo nos seus olhos. Uma lágrima, talvez? Um escape externo dos seus pensamentos mais obscuros? Sei que o seu olhar é vazio, não fixa nada no horizonte, sequer. Limita-se a ser terrivelmente leve, como se já não pertencesse a este mundo. Será louco? Estará completamente fora da humanidade?
Continua a andar. Sinto que o fim da sua demanda está próximo. O que ele procura, não sei ainda. Parou agora. Estamos à beira de algo que se me assemelha a um precipício. Olha uma e outra vez. Atira a beata do cigarro para o chão, pisa-a levemente, a música desliga-se por magia ou apenas porque ele quis que se desligasse. Parece controlar o mundo. Sorri finalmente, parece focado. E depois atira-se, sem mágoa nem remorso. Cai desamparado, os olhos fecham-se. Não sei se está morto, mas está em paz. Encontrou a solução. E finalmente faz-se silêncio completo.
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